O método e a organização da Teologia Dogmática - Herman Bavinck

O material para a construção de uma teologia dogmática vem da Sagrada Escritura, do ensino da igreja e da experiência cristã. Desde o início, a Escritura serviu como a regra de fé e o fundamento de toda teologia. Como a igreja se espalhou e alcançou todo o mundo, tornou-se necessário esclarecer e fortalecer a regra de fé contra o ensino falso. Isso levou ao surgimento de uma forte autoridade de ensino episcopal eaum aumento da dependência da tradição autoritativa da igreja. Ao longo do tempo, o peso da tradição aumentou, enquanto o papel da Escritura diminuiu. A Reforma tentou renovar a ancoragem da igreja na Escritura e, no tempo, deu origem a uma “teologia bíblica” anti-escolástica. A inversão filosófica na filosofia, representada por Kant, Schleiermacher e Hegel, produziu ainda outro método teológico - o subjetivo. A experiência substituiu o conhecimento como o fundamento da teologia, que fo i separada da ciência e da metafísica. Tendo como ponto de partida a consciência cristã, foram feitas tentativas de basear a teologia na moralidade, no sentimento de dependência absoluta ou na revelação do Espí­rito universal. A preocupação com a normatividade e com a objetividade eventualmente levou a uma ênfase sobre o estudo científico da religião, de sua história e de sua psicologia. O Cristianismo devia ser estudado de forma crítica, exatamente como as outras religiões do mundo.
Nem a objetividade científica nem o subjetivismo completo são possíveis. Todo conhecimento está arraigado na fé, e, para que a fé seja real, ela deve ter um objeto que não pode ser conhecido. Isso requer uma revelação divina que é mais que um cumprimento de um desejo subjetivo. A religião deve ser verdadeira e fornecer seu próprio caminho para o conhecimento e a certeza. Os teólogos cristãos devem colocar-se dentro do círculo da fé e, enquanto usam a tradição e a experiência, tomar seu lugar na realidade da revelação. Embora os teólogos dogmáticos estejam presos à revelação divina e devam levar a sério as confissões da igreja, seu trabalho também é pessoal e contextual. O sentimento religioso não pode servir como fonte epistemológica da verdade religiosa: a revela­ção divina é necessária. Ao mesmo tempo, essa verdade deve ser pessoalmente assimilada pela fé. A liberdade que isso proporciona não foi adequadamente compreendida pelo Catolicismo Romano. Há momentos em que figuras heróicas como Martinho Lutero são necessárias para combater o ensino falso e a conduta errada da igreja. Devemos obedecer a Deus, e não aos homens.
O interesse pela normatividade baseada na revelação, na dogmá­tica, não deve ser usado para servir como razão para se negligenciar ou negar a importância dos fatores confessional e cultural nos tratados dogmáticos. Ninguém está livre das influências da educação eclesiástica e do contexto ambiental específico. Nós sempre somos produto de nosso contexto, inclusive de nossa educação eclesiástica. A consciência dessa realidade levou algumas pessoas a tentarem se despir de sua identidade confessional e a voltar à situação mais confusa e ao “evangelho puro ” do Novo Testamento e da igreja primitiva. A assim chamada “teologia bíblica ” é, assim, oposta à “teologia escolástica ”, como se esta não fosse bíblica. Mas colocar a Escritura em contraste com o ensino da igreja é tão errado quanto separar o coração e a mente, o sentimento e o conhecimento. O único objetivo da dogmática é expressar os pensamentos de Deus, que ele afirmou na Sagrada Escritura. Um bom método dogmá­tico deve levar em conta o ensino da igreja e a experiência cristã, tanto quanto a Escritura. A teologia dogmática é possível apenas para aquele que vive na comunhão de uma igreja cristã. Enquanto a Escritura é logicamente o único fundamento da igreja e da teologia, pedagogicamente a igreja é anterior à Escritura. Dogmática não é, porém, o mesmo que simbólica. Esta descreve e explica a confissão da igreja, enquanto a dogmática expressa aquilo que deve ser considerado como verdade, mesmo que difira da confissão corrente da igreja. A simbólica e a dogmática, contudo, mutuamente se influenciam e se auxiliam.
Virtualmente, toda dogmática começa com a doutrina da Escritura como o único fundamento da teologia. O conhecimento de Deus dado na revelação não é abstrato e impessoal, mas o vital e pessoal conhecimento de fé. A revelação objetiva na Escritura deve ser completada pela iluminação subjetiva, que é o dom do Espírito Santo. O teólogo bem equipado executa sua tarefa vivendo na plena comunhão de fé com a igreja e Cristo. O melhor método para se fazer teologia é, portanto, o método sintético-genético, que reproduz o modo pelo qual o dogma cristão surgiu organicamente da Escritura como um todo. O método experimental de Charles Hodge, por outro lado, ao reunir fatos e, a partir deles, elaborar uma hipótese comprovável para explicar esses fatos, separa fato e palavra e falha por não fazer justiça à unidade do ensino da Escritura.
Uma vez que o método preferível para o estudo da dogmática tenha sido escolhido, encaramos o problema de organizar o material. Como o conteúdo da dogmática deve ser organizado? Os primeiros teólogos da igreja forneceram alguma ordem em seus tratados, mas geralmente careciam de um princípio claro de organização. Entre os arranjos mais antigos estão aqueles que seguiam a ordem trinitária básica do Credo Apostólico. E digno de nota que, desde o início, as implicações éticas de certas doutrinas estavam incluídas nos resumos teológicos. O material da teologia tomou-se muito mais organizado nos tempos medievais, gra­ ças à obra de homens como Boaventura, Pedro Lombardo e Tomás de Aquino. Um desenvolvimento crítico durante esse período fo i a aceitação da distinção entre artigos de fé “mistos ” e “puros ”. Somente os artigos de fè extraídos da revelação e da teologia eram puros. Aqueles que eram extraídos da filosofia (e da teologia) eram mistos. Essa distinção levou a uma ênfase maior sobre o papel dos prolegômenos filosóficos para a teologia. Os fundamentos da teologia foram considerados como “teologia natural” e, assim, deviam ser extraídos da filosofia e através da razão, à parte da revelação. Essa parte da teologia cresceu significativamente em relação ao conteúdo doutrinário em si.
Os teólogos da Reforma inicialmente ignoraram essas questões de prolegômenos, preferindo concentrar-se no conteúdo bíblico. Como os teólogos protestantes seguiram o caminho dos católicos medievais, seu produto final tomou-se mais “escolástico ”, provocando mais uma vez uma reação que favoreceu o ensino e a pregação “bíblicos” e “práticos”. Focalizar as questões práticas tem tanto vantagens quanto desvantagens. Tanto o método analítico, que é governado pelos interesses práticos de como obter a salvação, quanto a teologia pactuai de Cocceius são problemáticos porque seu ponto de partida teológico não é Deus, mas a necessidade humana de comunhão pactuai, de salvação. O impacto da filosofia moderna mudou a face da dogmática ao depreciar o conteúdo e aumentar a discussão formal sobre o método. Desde que Kant declarou que Deus não pode ser conhecido, a razão e a teologia natural substituíram a revelação divina. A moralidade e o sentimento religioso tornaram-se o ponto de partida e o objeto da teologia; os prolegômenos da filosofia religiosa cresceram em tamanho e influência em comparação com o conteúdo da teologia.
Falando corretamente, o conteúdo da dogmática é o conhecimento de Deus como ele se revelou em Cristo através de sua palavra. A dogmática não é um sistema filosófico nem uma descrição subjetiva de fé pessoal. Em vez disso, é uma explicação do conteúdo da fé cristã que é dado objetivamente por Deus na revelação e recebido pelos crentes pela fé através do poder do Espírito Santo. Em termos de ordem, embora uma ordem trinitária, divida em termos da economia dos trabalhos divinos (pai e criação, Filho e redenção, Espírito Santo e santificação), deva ser recomendada por seu caráter totalmente teológico, o método históricogenético é muito melhor e deve ser preferido. Na ordem trinitária, há muita superposição no conteúdo, e a história da teologia e da filosofia deixam claro que é muito fácil cair em especulação teogônica. Muito melhor é o método que parte de Deus e desce até suas obras na criação e na redenção para, através delas, trazer a criação de volta a Deus. A essência da religião cristã consiste na realidade de que a criação do Pai, arruinada pelo pecado, é restaurada na morte do Filho de Deus e recriada pela graça do Espírito Santo no reino de Deus. A teologia é sobre Deus e deve refletir um tom doxológico que o glorifique

Extraído de:

BAVINCK. Herman. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. Volume 1 - cap. 2, p. 59-61

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Pode não pastor!

Relatório de Leitura: Pregação e Pregadores - Martyn Lloyd-Jones

Relatório de Leitura: O Chamado para o ministério de Charles Spurgeon